Batemos um papo com a velejadora Mariana Borges, fundadora do projeto Vela para Mulheres. A iniciativa, que já formou quase 50 novas velejadoras por ano ao longo de quatro anos, busca democratizar o acesso à vela e criar um ambiente acolhedor para mulheres dentro do universo náutico. Além de ensinar técnicas de navegação, o projeto também promove experiências únicas a bordo, incentivando o aprendizado coletivo e a troca de vivências.
Confira a entrevista na íntegra!
Como surgiu a ideia de criar o projeto Vela para Mulheres e quais foram os principais desafios no início?
Há 5 anos, decidi que mergulharia de cabeça no meio náutico e, para materializar isso, coloquei na minha cabeça que precisava comprar um barco. Conheci a vela ainda criança, mas algumas circunstâncias e outras responsabilidades me fizeram não estar tão presente nos últimos anos. Em 2020, com o início da pandemia e um casamento desfeito, senti a necessidade de acelerar o processo. Só que foi aí que descobri que o que eu sabia sobre barco e o mundo da vela não era praticamente nada e comecei a passar alguns perrengues que não contava. O maior e talvez o mais chocante pra mim foi perceber como o universo náutico enxergava a mulher a bordo. E esse primeiro contato como figura ativa na vela e não mais como coadjuvante parecia como um soco no estômago. Foi como se eu tivesse mergulhado em estruturas quase caricaturescas de um machismo que vem do berço da civilização, mas era como se, naquele espaço, tudo se tornasse mais descarado e permissível.
Isso tudo mexeu muito comigo e comecei a perceber em conversas com outras mulheres proprietárias de embarcações, que eram muitas as histórias que acabaram sendo normalizadas pelo ambiente de onde e como viviam. Claro que quando eu falo sobre esses episódios e percepções, muitas pessoas (homens e mulheres) rebatem dizendo que nem sempre isso acontece. O que me parece óbvio, até porque, se fosse só isso, eu nem estaria aqui pra contar isso e, da mesma forma que me deparei com essas circunstâncias, também conheci o outro lado, de pessoas (incluindo homens) que me estenderam a mão e me ajudaram a chegar até aqui. E foi a partir daí que fui trilhando um caminho para ajudar outras mulheres que quisessem ter um espaço seguro e acolhedor em que pudessem ser, sentir e fazer o que quisessem. Que pudessem desenvolver a confiança e começar por um caminho com menos obstáculos na vela.
O que diferencia esse projeto de outras iniciativas voltadas à vela?
Eu sei que tem muitas mulheres e homens bem intencionados em fazer a vela se expandir. E isso é maravilhoso! O que acontece é que nem sempre a vela tem um acesso democrático. E o meu objetivo é justamente democratizar esses acessos e ajudar essas pessoas a permanecerem. Todos nós sabemos que a vela é um universo caro. Não só para esportistas, mas também para quem busca na vela uma filosofia de vida. O minimalismo que o espaço físico de um barco sugere, não vale sob o ponto de vista econômico porque grande parte das peças, acessórios e etc possuem valores altos (uma capa de almofada feita por uma empresa do ramo e X vezes mais cara do que uma almofada pra você colocar no sofá de casa). Sendo assim, como posso democratizar esse espaço se só o torno acessível apenas para uma parcela da população? E é claro que também existem escolas sociais que oferecem aulas e bolsas para pessoas de poder aquisitivo mais baixo. E o objetivo não é esse. Não sou uma escola e nem dou aula formalmente. A minha proposta é passar um conhecimento de forma fluida e oferecer experiências a bordo que vão além da teoria e prática de vela. Existem muito boas escolas que ensinam todas as técnicas para velejar. Não é o meu propósito e todas as mulheres que vêm velejar comigo dizem exatamente isso: Que pela primeira vez puderam ser elas mesmas, assumir suas falhas, suas condições físicas e emocionais. Isso não se ensina em uma escola ;)
Você mencionou que o projeto utiliza mão de obra feminina e materiais reaproveitados. Como funciona essa logística e qual o impacto disso na sustentabilidade?
Esse último barco que eu comprei é um super barco. Tanto para competições, quanto para travessias e para viver a bordo, mas eu o comprei em uma condição complicada. Primeiro porque eu não tinha dinheiro para ter um super barco se ele não estivesse em perfeitas condições. E ele estava muito avariado. O barco ficou abandonado muitos anos e o comprei para que pudesse reformá-lo por completo. Claro que não tinha ideia do trabalho que eu teria (e ainda tenho) pra colocá-lo navegável rs. Traduzindo: Não sabia onde tinha me metido rsrs… Por isso, em cada etapa da reforma, conto com a ajuda de mulheres não apenas pra ensinar, mas, principalmente, para aprender. Afinal, mais uma vez, descobri que não sabia o suficiente e, para colocar esse barco em uso, precisei e preciso também de muita ajuda. E a falta de dinheiro não foi apenas para comprar o barco, mas também para poder realizar a obra. Por isso, muita coisa eu acabo reaproveitando de segunda mão, através de doações de outras pessoas e barcos, além de arrumar algumas soluções mais dentro do orçamento e que tenha menos impacto ambiental. Como por exemplo, a utilização de materiais produzidos a partir de reciclagens.
Qual é o perfil das mulheres que participam? O que as motiva a procurar a vela?
Conheço muitas mulheres que nunca nem tinham ouvido falar de mulher comandando um veleiro. Parece loucura pra gente que conhece tanta mulher incrível à frente dos seus barcos, mas para pessoas de fora do meio, o máximo que já ouviram falar (nas palavras delas) é na “Tamara Klink que ficou meses no gelo sozinha”, na “Martine Grael que participa das Olimpíadas e é da família dos velejadores famosos”, e “a menina menor de idade que tem um filme da Netflix sobre a viagem dela de volta ao mundo”. É como se fosse um universo muito inacessível para elas. Se não pela condição financeira, é porque são vistas como “celebridades”. E se esquecem (ou não sabem) que são pessoas comuns e, assim como elas, tem um número enorme de mulheres no Brasil e no mundo que têm a sua vida entrelaçada com a vela. Quando elas vêem que não só é possível, mas que também existem outras mulheres comuns como elas assumindo essas atividades, soa como uma catarse. É como se a liberdade que tanto procuram em outros espaços sociais estivesse ali pertinho delas.
Como é a recepção das mulheres no meio náutico, um ambiente historicamente dominado por homens?
Olha, eu já vi e ouvi muita coisa por aí. Claro que eu prefiro dar exemplos de mulheres que são muito receptivas, acolhedoras e que se alegram quando veem outras mulheres se juntarem ao grupo. Grande parte das mulheres que eu conheço é assim. Isso é maravilhoso! São mulheres seguras do seu papel no mundo e possuem uma consciência sobre o coletivo enorme. Agora, eu acredito, por uma questão cultural, já que fomos estrategicamente incentivadas a nos colocarmos em posição de defesa em relação às outras, que talvez explique porque tem ainda algumas manas que possuem comportamentos e opiniões machistas sobre tantas questões que a cercam. Percebo que muitas vezes, essas mulheres reproduzem de forma firme o que aprenderam, mas pouco crítica. Outras fingem não perceber alguns absurdos e eu não sei se é porque estão cansadas mesmo ou se é porque têm medo de se posicionar e falarem o que pensam.
Existe algum momento ou história marcante de alguma participante que você possa compartilhar?
Existe um episódio muito legal - mentira, existem vários, mas teve um que foi bem marcante - de uma regata que fizemos em que 4 das 7 tripulantes do barco estavam menstruadas e com muitas dores. Uma delas, não me recordo se estava menstruada também, enjoou e precisou ficar deitada na maior parte do percurso. Apesar disso, todas tiveram sua condição respeitada e acabou que, de uma forma ou de outra, todas puderam desempenhar o seu papel a bordo. No final, o feedback que ouvi e eu espero nunca me esquecer: que pela primeira vez, puderam ser elas mesmas dentro do barco.
O que ainda precisa ser feito para ampliar o acesso das mulheres à vela e garantir mais equidade no esporte?
Eu acho que não só na vela, mas também em outros espaços, homens e mulheres precisam parar de passar pano para situações que em pleno 2025 ainda somos obrigadas a passar. No fundo, acho que existe uma pseudo politicagem para uma “boa convivência”, onde o custo para que isso aconteça é nos calarmos e continuarmos sendo assediadas e violentadas. Como na última regata exclusivamente feminina em que participei, onde um grupo de homens que se propôs a acompanhar a regata com o objetivo de auxiliar algumas velejadoras, fez comentários constrangedores sobre algumas participantes durante a prova. Ou ainda em outra regata exclusivamente feminina em que um velejador não só insistiu como fez questão de comparecer na confraternização só das mulheres e eu me pergunto (como se eu não soubesse a resposta) por que ele fazia tanta questão de estar em um ambiente que visivelmente não era para ele estar? E, por mais que algumas velejadoras ainda precisem de ajuda em determinados momentos, por que a participação masculina não se limita a isso? Por que precisam vir acompanhadas de uma piada, um assédio, uma desvalorização ou qualquer outro comportamento inadequado?
E ainda experimente falar sobre esses assuntos em uma mesa mista dentro ou fora de um clube. O corporativismo de gênero ainda vai tentar justificar as atitudes e quando não conseguir fazê-lo, vai tentar agir em represália.
Quais são os planos futuros para o projeto? Há alguma iniciativa nova que deseja implementar?
A primeira coisa é terminar a reforma do barco e colocá-lo navegável já que nos dois últimos anos, eu tenho utilizado barcos de outras pessoas para fazer as regatas. Então minha meta é até o meio do ano estar com ele fazendo as regatas. Para as vivências e travessias também. A parte burocrática também está se definindo e isso é muito bom. A gente não faz ideia do tanto de coisas que precisam acontecer antes de abrir uma vela e sair velejando…rs. Até lá, continuo contando com a ajuda de muitas pessoas e, da mesma forma que me ajudaram muito até aqui, quero continuar compartilhando o que consegui construir com todas essas mãos.
Quem pode se inscrever e como e quando acontecem as inscrições e abertura de vagas?
Existem duas frentes abertas no momento: a primeira é a participação em regatas e a segunda é na reforma do barco. No meio do ano passado tive alguns problemas de saúde e passei por uma cirurgia que me deixou debilitada por um bom tempo. Então precisei me reestruturar financeiramente para conseguir dar sequência à obra.
Eu recebo mensagens o ano inteiro de mulheres querendo participar e pedindo mais informações, mas sinto que a grande questão para aumentar a participação feminina é quando exponho que é um trabalho pesado, que vai trazer muitas vezes um cansaço físico grande. Só que eu preciso deixar essa informação clara, já que a maioria desconhece como é uma rotina de lixar, pintar, mexer com fibra e outros materiais muitas vezes tóxicos. Precisa colocar a mão na massa mesmo.
Qual contato para infos?
Instagram @velaparamulheres